sábado, 4 de novembro de 2017

A Questão Econômico-Social parte da Consciência - e não da mente

Por mais interessante que pareça para os entusiastas bem intencionados, existem muitas armadilhas em certos tipos de ideias. Armadilhas que podem não se revelar no aspecto central da ideia, mas que, devido à sua solução superficial, não é capaz de solucionar problemas fundamentais humanos. 

Nos últimos meses li alguns artigos sobre o conceito de Renda Básica Universal (RBU). Me pareceu bem interessante. Primeiro porque, de fato, ao que tudo indica, é um programa viável*. E é realmente bem-intencionado: livrar as pessoas de ocupações desagradáveis, insalubres, que não adicionam nada de substancial à cultura, à ciência, ao meio ambiente, à consciência. E por vezes nem são economicamente interessantes. 

Quantas pessoas, nesse exato momento, estão em milhares e milhares de lojas de artigos de luxo ou bugigangas, cumprindo uma função, à espera do fim do dia para poder fazer o que lhes apetece? Estão lá porque necessitam de uma ocupação. As causas podem variar, mas destaco as principais: 

(a) necessidade de pagar contas / sustentar família; 
(b) adquirir experiência para galgar algo melhor futuramente; 
(c) foi lhes imposto que deve-se aceitar qualquer coisa, o mais cedo possível - pois outra oportunidade pode não vir e o futuro tende a ser pior. 

As três se relacionam e podem gerar outros motivos. Mas o ponto central é saber se os empregos disponíveis gerados pelo sistema atual, centrado numa lógica econômica férrea, que se calca numa natureza humana supostamente inalterável (apenas controlável), estão de fato auxiliando a nossa espécie a se tornar melhor em todos aspectos. Eu diria que sim, se muitos fizessem uso da dor impingida diariamente pelas incompreensões e humilhações - de todos tipos - para gerar novas concepções, elaborar ideias, aumentar a confiança em seus discursos e buscar construir sínteses  mentais poderosas, passando a orientar melhor a própria vida. No entanto, pouquíssimos ainda o fazem. Estamos diante de proporções que beiram o milésimo na melhor das hipóteses. Os exemplos realmente formidáveis estão no grupo do milionésimo. Dessa forma, o progresso ainda é lento.

Por outro lado temos aqueles com poder. Estes, com suas emissoras de TV e rádio; com seus jornais e revistas; com seu dinheiro e terras; com suas empresas e bancos, poderiam, caso se associassem em comum acordo, conduzir o mundo para caminhos mais honestos, menos procrastinadores - e consequentemente com menos conflitos psicológicos, econômicos e bélicos. Mas isso não ocorre. O que vemos é: aqueles que detêm o poder se corrompem pelo mesmo, passando a ser servos da matéria. Alguns em níveis baixos (reality shows de celebridades, por exemplo). Outros em níveis mais sofisticados (criação de empresas para suprir buracos no mercado, como planos de saúde, por exemplo). No entanto, tanto um quanto o outro são ocupações que se aproveitam do estado calamitoso da espécie, imersa no torvelinho das sensações superficiais e ocupações repetitivas. 

Àquele que mais possui mais será cobrado. Quem teve estudo, cursou excelentes universidades, teve tempo livre para se capacitar e fazer o que gosta, possui uma estrutura familiar sólida, saúde (e acesso a ela!), entre outros privilégios**, tem a obrigação de construir um organismo supra-nacional capaz de conduzir não apenas a nação, mas toda a humanidade, ao lado de todas formas de vida, e todo ambiente terrestre, a um estado de consciência e harmonia mais elevado. Se isso não é feito, a culpa recai sobre quem mais teve. Os que menos possuem tem culpa, pois em qualquer posição é ´possível fazer algo de positivo. No entanto, os maiores culpados são aqueles que não o fazem tendo todas condições.

Por que isso ocorre? 

Os instintos são muito fortes. O ser humano, com o despertar da razão, se elevou acima do animal no nível psíquico - mas permaneceu exatamente igual no nível biofísico. Este sempre puxa a mente para torná-la nada mais do que um acessório cuja função é servir da melhor forma. Servir a natureza inferior, mas jamais transformá-la através da superação. Esse é o grande dilema. E quanto mais se tem (corpo belo, saúde, "amigos", acesso a bens e serviços, empregos bem remunerados, parceiros belos,...) e se ouve apenas o que se deseja, mais forte é o campo magnético que arrasta a alma para o inferno do relativo, segregando e repetindo verdades relativas de forma cada vez mais intensa, mais violenta. Eis porque tornar-se rico, belo e inteligente é o maior dos desafios - e quase sempre, o pior castigo. Não e usa a matéria para elevar o espírito. Se reproduz a matéria e usa-se o espírito a seu favor, puxando-o para baixo. Degradação é o processo. Dor é o destino. Até quando, não se sabe...

Voltando à RBU. Decidi escrever sobre ela porque li um artigo [1] que coloca justamente a questão: seria ela, de fato, a solução? E aí é preciso tomar muito cuidado.

Quando me ponho em posição cética diante de questões desse tipo, não o faço porque quero manter o estado das coisas. É óbvio que libertar o ser humano de ocupações destituídas de sentidos - que inclusive degradam a pessoa no consumo conspícuo e destroem o ambiente - é ótimo. Nisso a RBU tem meu apoio. Mas pergunta-se: será que isso iria resolver o problema da desigualdade (de oportunidades, de renda, de acesso a bens fundamentais, à cultura, etc)? Será que isso acabaria com os monopólios das mega-corporações? Será que isso reorientaria as pessoas, tornando-as partícipes de um movimento muito maior, para construírem a si mesmas, fazendo-as superarem certos instintos? No artigo supracitado o autor desenvolve esses temas, mostrando que o buraco deve ser mais no fundo. E aí me convenço cada vez mais que ler e estudar coisas do mundo, - por mais sofisticadas que sejam - vindo de fontes de estudiosos bem-intencionados, pode ser uma armadilha de forças invisíveis para continuar reproduzindo a lógica de exploração - de outra forma.

Eu já achava estranho quando Scott Santens, grande entusiasta e estudioso da implementação da RBU, atestava que "o rico não ficaria menos rico" e "todos teriam um mínimo de renda". E percebi, pelos gráficos e números apresentados, que a diferença continuaria. O princípio novamente pode ser bom: não-agressão a um conceito fortemente arraigado no subconsciente da imensa maioria - jamais impedir que alguém possa ficar rico atuando pelas regras "legais" vigentes. Mas às vezes é necessário admitir que, sem uma redistribuição dos recursos, a pobreza é absoluta. 

A diferença entre quem tem e quem pouco tem (e não tem) está apenas no tipo de miséria: os pobres se digladiam para subirem e praticarem o que a classe média possui. Esta se sufoca para reproduzir patrimônio e se reafirmar. E os ricos planejam como farão para manter o domínio. Mas todos são miseráveis. Quem tem tem pavor de perder. Quem não tem quer ansiosamente ter, para se apavorar em sustentar aquilo. Há casos em que a miséria interior é tão grande diante das maiores satisfações exteriores, que ocorre uma ruptura, e gera-se novos conceitos de vida. Assim nascem os santos, os místicos e os gênios. 

"Having a collective conversation about basic income without talking about income inequality is dangerous. If you want to talk about social injustice, you must eradicate income inequality that threatens capitalism, democracy and human rights themselves." [1]

A RBU não é mais geral do que a democracia e direitos humanos. Ela é, por excelência, algo do domínio econômico. Justamente por isso não tem a potência de transformar a humanidade efetivamente. Ela poderá ser uma consequência de um despertar interior, que levará a uma reforma nas ciências humanas aplicadas (política e sociedade, psicologia profunda), que por sua vez irá elaborar uma ferramenta do tipo. Mas ela como item fundamental, acionador de outras virtudes, não é possível.

Apenas das concepções metafísicas pode brotar uma existência física agradável - ou não. É nesse campo que devemos atuar. É questão de orientação.

O gráfico abaixo [1] revela que a porcentagem da renda nacional indo para o 1% mais rico aumentou em todos países pesquisados. Nesse ponto é de se perguntar como uma distribuição iria auxiliar a desmontar relações de poder que são extremamente violentas - especialmente no campo psicológico e econômico.

"Would a $1,000 make much of a difference to our spirit and sense of empowerment? Or is receiving a UBI like accepting an NDA to remove ourselves from all serious discussion of social inequality in the future?" [1]

A implementação da RBU pode "aliviar" as pessoas de continuarem debates, questionamentos e estudo em torno na desigualdade (de todos os tipos). Isso é passado como algo bom por muitos. Se sabem ou não da questão fundamental, não sei. Mas é bom começarmos a ir mais à fundo nas ideias para não corrermos o risco de cair em - mais uma - armadilha de nossa mente. 

Parafraseando Rohden, 

"Deseja-se um novo início - não um velho continuísmo."

E o autor continua:

"We know that millions of jobs will be lost due to automation, but we don’t know what the solution is. We aren’t just not preparing for a world governed by Artificial Intelligence, we are creating the economic systems that might imprison us further, under the guise of social justice."

Entre outras questões, eu poderia perguntar:
  • Como ficaria a questão da saúde? Eu não seria capaz de pagar um convênio de qualquer forma. Logo, não se toca em pontos nevrálgicos;
  • Aqueles que ganham relativamente bem e/ou precisam sustentar família não teriam tanta liberdade a mais com a RBU, e considerarmos que para empregos "melhores" ela representa uma fração dos ganhos (10~15%);
  • A questão ambiental seria melhorada? A poluição atmosférica, os carros ineficientes, a alimentação industrializada e pesada, o consumo excessivo de energia, a extinção de espécies de grande importância para nossa alimentação (ex: abelhas)...como ficariam? A RBU toca nesses pontos?;
  • As pessoas buscariam cultura - ou apenas entretenimento?
Dessa forma busco me redefinir e voltar solidamente ao terreno dos grandes conceitos, situados no imponderável, muito mais capazes de gerar uma ideia nova.

Continuo mais mergulhado na Grande Sìntese, na Gita e conceitos de Ubaldi, e Rohden, cuja abordagem nos indica o caminho que levará à transformação.


Observações:
* Já existem projetos piloto aplicados em várias localidades do mundo. A Finlândia iniciou um programa do tipo com um número de pessoas; a Nigéria teve uma experiência bem-sucedida; o Alasca possui uma estrutura do tipo; e vários programas governamentais aplicaram parcialmente esse princípio com muito sucesso em erradicar a pobreza extrema - como o Bolsa Família. 
** estes deveriam ser direitos humanos fundamentais, conforme declarado pela própria ONU há mais de 6 décadas.

Referências
[1]https://medium.com/@Michael_Spencer/is-universal-basic-income-really-a-solution-c0d6d95f100e

Nenhum comentário:

Postar um comentário