segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Tudo posso. Nada quero. Pois sei que tudo devo.

A maior liberdade que há é aquela de obediência aos princípios superiores por livre convicção. 
A maior escravidão que há é aquela de livremente buscar a satisfação dos instintos. 

Assim afirma a vida ao longo dos milênios e eras, tecendo um mosaico cada vez mais cristalino sobre a finalidade da existência humana. Assim concluem aqueles que viveram a sofreram, compreenderam e caminharam, buscaram e encontraram. Cada qual recebendo sua dose particular, necessária, para chegar a tal estado. 

A questão do conhecimento substancial é diferente daquela do conhecimento superficial, da forma. Para atingi-lo de forma realmente eficaz, tornando nossa vida mais plena e orientada para uma meta sólida, - porém abstrata - deve-se viver com intensidade suficiente na interioridade. Os efeitos externos podem não dizer muita coisa das pessoas. Pois há muitos efeitos semelhantes que podem ter gênese em causas radicalmente distintas; ao passo que isso dificilmente se dá com causas semelhantes. Quanto mais centrado (profundo) um fundamento, um princípio que move alguém, maior será a identificação com outro alguém movido pelo mesmo conceito. Mesmo que a forma de atuação seja, na superfície, muito diferente. Porque se trata acima de tudo de um conceito de vida. Quem se firma na causa para gerar seus efeitos age de forma diametralmente oposta àqueles que se afincam nos efeitos para reproduzi-los. O primeiro possui mais riqueza por estar próxima à Fonte. O segundo necessita reproduzir efeitos através de repetições diversificadas no estilo, no tempo e no espaço para sustentar o que julga ser a finalidade da existência.

Quem tem poder nada quer. Pois já (sabe que) possui domínio sobre seus sentidos e sua mente. Possuir esse domínio sobre suas posses psíquicas e físicas é orientação suprema no longo prazo - apesar de prováveis dificuldades e sofrimentos no curto e médio prazo. É saber usar o disponível, o temporário, o perecível, o relativo. Transforma-se a substância em algo mais transparente. A forma se purifica. A mente fica leve de pensamentos vazios. Os sentidos se concentram nas atividades. Foco e intensidade.

Não querer. Princípio de desapego. Já se tem tudo. Basta desenvolvê-lo. Um princípio no campo da consciência, nutrido com suficiente esforço, impulsionado com vontade intensa, se propagará cedo ou tarde, gerando obras concretas que caminham por conta própria. Sementes que se espalham por todos os cantos do tempo, do espaço e do espírito. A eficiência atinge o vértice, englobando mais do que simplesmente um balanço do que se conhece. Plasma-se o organismo, com reações fortes, apontando para doenças e fraquezas. É o caso do Padre Pio de Pietrelcina, com saúde frágil desde tenra idade - mas com um ímpeto que o levou a realizar obras que nem o mais viril, saudável e rico homem do mundo conseguiria fazer. Trata-se evidentemente de forças que estejam em outras dimensões...A História nos mostra incontáveis exemplos.

Dever é o real trabalho. Não-alienado. Não-exaustivo. Aquele que consome o indivíduo mas não passa tal sensação. O espírito voa livremente em planos estratosféricos, puxando o pobre corpo aos limites. Após a viagem, a recaída. Ubaldi retrata esses exemplos, com rigor extremo, de forma sistematizada e ordenada, nos volumes Noúres e Ascese Mística.

Senso de dever é a orientação suprema que falta à humanidade. Não aquele dever de cumprir com obrigações supérfluas as quais nos prendemos a nível instintivo (checar emails, participar de reuniões, criar e reproduzir formalismos e cultos de todos tipos, buscar distrações, entretenimento, se socializar sem desenvolver a sensibilidade social, entre tantas outras divergências engessantes...). Trata-se de um dever que nasce do íntimo e nos conduz. Não sabemos explicá-lo. Mas sentimo-lo. Nossa atitude é moldada por ele. Nossas ações. Nosso silêncio. É a construção de pilares diversos, sustentados por terreno intangível, inexplorado, temido...

Tudo poder,
Nada querer, 
Por tudo dever.

O mundo nos passa uma visão distorcida desse princípio. Nos comerciais, na lógica econômica, no que se espalha,..tudo que se vê, ouve e lê indica que nossa potência (poder) é limitada e (des) orientada para alimentar os excessos - que geram carências, que levam a desequilíbrios. Logo, não se pode...

Sentindo que de fato não podemos (nos transformar) ansiamos por tudo querer, e assim corremos e agredimos, desesperados em tirar o nosso quinhão de qualquer situação, por qualquer motivo. A racionalidade despertou para cumprir essa função*. Essa incessante busca exterior, seja nas sensações, seja no eruditismo exacerbado, seja na busca pela visibilidade social (nos meios abastados e poderosos), seja no desespero do "ganho" de tempo ou nas posses,...tudo denota uma necessidade de preenchimento interior. Ela só será saciada com o conteúdo adequado. Imaterial. Profundo. Uma catarse. Experiência interior, cujo caso mais extremo, vértice da paixão divina, é o místico. Melhor ainda quando se une o misticismo intenso com a inteligência profunda, gerando a personalidade capaz de penetrar nos mistérios da vida sem medo.

Por fim, o dever...

Quantas vezes julgamos não dever nada (reparar uma injustiça, um xingo, uma violação de diretos,...) devido ao orgulho. Porque aceitar o dever implica necessariamente em estar livre do querer. E para estar liberto dessa chaga multimilenar (querer mais e mais e mais), nada melhor do que enriquecer...no espírito.


Comentários

* Falei sobre isso num ensaio anterior
 http://leonardoleiteoliva.blogspot.com.br/2017/10/racionalismo-em-cheque.html


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