quinta-feira, 9 de abril de 2015

ERA UMA VEZ UM ESCULTOR MÁGICO E DOIS BLOQUINHOS

Era uma vez um Grande Escultor Anônimo. Possuía a característica de fazer obras magníficas e belas. Mas sempre ao fazê-las recorria a métodos que pareciam caóticos àqueles que observavam a suas obras.

"Não é possível que vá sair algo dessa coisa...", diziam alguns, observando o hábil e paciente Escultor. Alguns o desconsideravam, outros, jamais compreendendo o seu "método", desistiam de decifrá-lo e simplesmente se maravilhavam com as obras prontas. Ordenadas, harmônicas e vivas. Vivas...tamanha era sua capacidade de trabalho. Cada uma dava um aspecto de ser mais viva que outra.

Cada vez melhores, cada vez revelando mais da natureza do Escultor...

Mas o Escultor era, é e sempre será o que É. E suas obras revelavam partes dele. Quanto mais complexa, mais do Escultor se revelava em sua obra, formando assim um mosaico de belezas finitas que apontavam cada vez mais para uma Beleza Infinita.

E para algumas obras era exigido um trabalho além da conta. Pois quanto mais trabalho e amor, maior harmonia e beleza. Mais verdade. Mais sinceridade...

Recuperação da essência por camadas: corpo, sentimentos,
mente, espírito. Cada fim de ciclo demanda a destruição da
forma anterior. Devemos morrer por fora para nascer por
dentro. Metamorfose fácil para os animais, puramente
sensórios, mas dolorosa para os humanos, seres com
intelecto e em busca de algo a mais...
Nesse contexto existiam dois blocos brutos. Grandes, sujos, pesados e disforme. Mas o Escultor, sapiente de tudo, percebeu um POTENCIAL fora-do-comum naqueles dois bloquinhos. Viu Beleza em estado latente. Vontade submersa. Expressões escondidas. Inteligência oculta...Quis criar dois seres complementares.

Decidiu trabalhar em cima da matéria bruta, dia após dia, arduamente e com uma tal intensidade que chegou a assombrar aqueles que passavam por perto de seu local de trabalho. As marteladas eram fortes e intensas, mas as partes começaram a tomar forma.

Quando começava a se esboçar rostos e corpos, muitos se admiravam. Mas o Escultor via aquilo e não se contentava. Ele viu inteligência e alma em cada bloco. E também decidiu trabalhar em cima dessas duas frentes...

De repente os blocos começaram a sentir e perceber as coisas. E o Escultor passou a trabalhar em planos mais elevados, de longe, mas sempre atuante. Cada vez mais penetrante, cada vez mais refinado...

Corpo, sentimentos, intelecto, alma....

Os "bloquinhos" vivam e eram felizes em sua primária inteligência e ingênuos sentidos.

Mas o Escultor continuava a trabalhar em cima dos dois.
Estavam longe (muito longe) da perfeição...E Ele sabia disso, e trabalhava, martelada após martelada.

As marteladas da matéria passaram a ser na mente e nos sentidos. Depois nas almas. Cada vez mais fundo, cada vez mais cirúrgico. E mantinha-os separados, junto com outras obras anteriores. Não queria ver suas duas novas obras juntas antes de cada uma atingir o máximo que poderia ser. E depois de juntas, sabia que criaria algo tão belo, tão sublime e tão harmônico que poderia deixá-los continuarem sua melhora, juntos, se lançando a empreitadas que lhe dessem marteladas nos pontos certos, para se aproximarem cada vez mais do seu ideal...E do ideal do escultor...

Esse era o Grande Escultor...

Os "bloquinhos", separados, começaram a sofrer e se desiludir. Choravam, gritavam e se desesperavam. Agiam de modo certo com os outros bloquinhos e recebiam pancadas em troca. Do que não viam (martelo do Escultor) e dos seus semelhantes - que estavam estacionados no tempo. Passaram-se anos e as derrotas e fracassos doíam muito. Ora um ora outro ameaçava desistir de sua existência e seus atos. Desespero por não encontrar alguém que o compreendesse.

No meio de tanto desespero e gotas de esperança, surge uma espécie de loucura que inicialmente vem como ímpeto e depois se traduz em calma e mergulho interior: "qual é a minha natureza?", "por que acontece tudo assim?", "de onde vem esse sofrimento?", "por quê?", "como funcionam as leis da vida?". Essas e muitas outras dúvidas alimentavam uma nascente curiosidade nos dois bloquinhos machucados e frágeis, que já começavam a tomar formas mais sutis que seu meio.

Cada qual a seu modo, os bloquinhos começaram a agir de modos diferentes. Receberam tantas dores (físicas, verbais, afetivas e espirituais) que se tornaram imunes a muitas delas. Melhor: começaram a usar todo seu passado como objeto de estudo e (sobretudo) autoconhecimento.

Quando estamos suficientemente feitos por fora podemos sair
e nos fazer por dentro. Trabalhar em camadas cada vez mais
profundas, percebendo um universo cada vez mais vasto.
Criaram se modos de vida, concepções de mundo. Estudos, esforços e ensaios de discursos fora-de-série. Uma forma de sentir e pensar diferente. Viam que muitos bloquinhos tinham os mesmos desejos e sofriam muito, mesmo sofrendo menos marteladas de seus irmãos. Mas estes não compreendiam o que acontecia ao redor, enquanto os dois protagonistas vislumbravam uma finalidade para tudo aquilo. Uma razão-de-ser de todos fenômenos e atos...

Nossos protagonistas não se destacavam pela sua força ou aparências. Nem sequer pela inteligência. Eles possuíam esses atributos, mas (aparentemente) apenas na medida que o Escultor considerava ideal. Nada de excessos aqui nem ali. Quando uma parte atingia a máxima perfeição - o ponto ideal - partia-se para outra completamente diferente...

E a alma ardia e sofria em chamas invisíveis. Fornalhas que só eram sentidas por aqueles que superaram a si mesmos e abraçaram suas dores.

Fornalhas que passaram mais a ser interessantes do que pesadelos...

As dores eram intensas e profundas. Nada que o mundo percebesse. Para muitos os atos de inquietação, apesar de serenos, eram uma frescura de fracos. Uma doença e sinal de fraqueza. Nada a acrescentar para o mundo...

Mas nossos protagonistas começaram a criar e crescer. Um deles iniciou, sem planejamento, uma série de trabalhos não visto como tal. Estudo, escrita e descobertas. Vivência. E tal era o ímpeto de produção que ele decidiu fazer suas descobertas e estudos intuitivos por conta própria, se enclausurando em seu quarto e frequentando seus ambientes.

"O tempo que você gosta de perder não é tempo perdido".

"Sem dor não há Salvação".

Essas palavras ecoavam pela mente de nossos protagonistas. Num de forma explícita, no outro implicitamente. Mas os dois estavam com suas faculdades plenamente desenvolvidas. Estavam quase prontos.

O Grande Escultor chegara ao ponto de ajuste fino. Suas marteladas eram sutis e leves. Mas tal era a sensibilidade nervosa atingida por seus "bloquinhos" que cada uma delas doía bastante. No entanto, curiosamente, eles aprenderam a controlar e canalizar essa dor, fazendo uso construtivo dela.

"Todo mal que me fazem não me faz mal.
Todo bem que me fazem não me faz bom.
Apenas meu Eu espiritual pode fazer-me bom ou mau." 

Huberto Rohden

Um dia, após muitas marteladas, o nosso Escultor decide aproximar os dois "bloquinhos". Eles haviam atingido uma beleza indescritível. Não tanto exterior, mas sim interior. Era esta que tornava aquela atraente e saudável. Uma harmonia indescritível. Dois seres construídos um para o outro.

Diferentes em suas formas, gostos externos e histórias,

Idênticos em sua maturidade e ímpeto ascensional...

A identificação não é imediata. As dores do mundo tornaram os dois "simples como pombos mas astutos como serpentes" (Sermão da Montanha). Mas sua visão profunda e vasta acelerou o processo de reconhecimento do outro. Em pouco tempo estavam os dois protagonistas juntos e se conhecendo. Um reforçava o outro em um aspecto específico.

A partir daí o Escultor, seguro de seu feito, deixou os dois bloquinhos andando juntos, por conta, no meio de todos outros. Eles próprios dariam suas auto-marteladas para continuarem a obra inacabada. Eles sabiam que não eram perfeitos e estavam muito longe disso, mas sua harmonia interna já lhes permitia viver em paz com eles e com os outros. E perceberam: um ajudaria o outro.

Ririam juntos, viveriam juntos.
Um ajudaria o outro na tristeza (e vice-versa). Um escutaria o outro (e vice-versa).

Eles estavam longe do Infinito,
mas cientes disso...

Eles se encaixavam perfeitamente,
e cientes disso...

Eles andaram muito pelos finitos,
E andariam muito mais e muito mais elegantemente pelos outros finitos...

Eles eram, são e serão dois finitos em busca do Infinito.

Dois finitos que vivem momentos finitos de intensidade infinita.
Às vezes sem dizerem uma palavra, sem fazerem um gesto, sem se tocarem...

São dois "bloquinhos" que se transformaram em homem e mulher.
São dois seres humanos que anseiam pela plenitude cósmica...

Nossa humanidade é permeada de histórias como essa - do Escultor e dois bloquinhos.
São numerosas mas raras. Porque muitos blocos se perdem no meio do caminho, atrasando sua plenificação por anos, decênios, séculos, milênios,...Poucos veem a dor e a abraçam. E com isso perdem a oportunidade de se esculpirem. De se tornarem cada vez mais sublimes, encaixáveis, casáveis,...

"Muitos são os chamados, poucos os escolhidos..."

Escrevo essa história na esperança de que o número de escolhidos se aproxime (um pouquinho) daquele dos chamados. Porque de nada adianta alguém viver num céu (interno) feliz enquanto outros estão num inferno (interno) infeliz.

Prefiro o Céu infeliz preocupado com o Todo do que um Céu feliz despreocupado com o Todo.

Porque um dia, se eu merecer, poderei atingir o meu Céu feliz interno, sem culpas, sem preocupações...

O verdadeiro e único Céu Feliz.

Junto com você, junto com todos os outros...

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