sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O Grito de uma Vida. O Grito de Todas as Vidas.

Me lembro muito bem. Era o começo de 2007. Eu estava na metade final da faculdade e aproveitando mais uma (daquelas maravilhosas e longas) férias de verão. E dessa vez o que marcou esse início de ano foi um grande filme. Grande em duração e significado. Um filme subdividido em quatro séries de uma hora e meia cada. Um filme insubstituível cuja temática foi abordada da forma mais adequada possível, mesclando realidade e utopia na dose certa. “O Grito de uma vida” é o nome desse filme. Dessa obra. Dessa realização ímpar na História do Cinema. E eu explicarei o porquê de todos esses elogios.

Nessa época minha mente estava em fase de maturação profunda. Era um período de reflexões acerca do que eu queria e poderia ser futuramente. Pensava muito em questões que estavam (foram) enterrdas nas mentes de pessoas. Questões pouco utilitárias, e no entanto com implicações profundas na vida cotidiana. Dentre elas estava a dúvida do que era de fato a luta dos trabalhadores ao longo da história.

O que mais me agradou em “O Grito de uma Vida” foi a abordagem sábia de um dos temas mais controversos do nosso tempo: a luta da classe trabalhadora por justiça. Nesse quesito, a minissérie consegue fugir da abordagem comum, e inicia a narrativa focando na vida específica de um rapaz, Robert Panaud (Francis Renaud), membro de uma família cujos chefes de família foram, por tradição – ou melhor, por necessidade – operários da indústria de aço na França.

150 anos de história dos Panaud são revividos em 'flashbacks' picados durante a projeção. Paralelamente corre a vida de Robert, desde sua infância até a idade adulta. E observando os dias desse rapaz constata-se o poder gravitacional da indústria na vida das pessoas que dependem – forçosamente, na maioria dos casos – dela para obter os recursos mínimos para sua subsistência. E todas vertentes da vida, se são afetadas, tem como uma das causas a situação na indústria. Isso significa que foi criada uma relação (forçada) de dependência entre seres humanos e fábrica. Uma relação que no longo prazo não traz ganhos para ninguém e só gera lutas e insatisfações da (numerosa) parcela oprimida.

Desde fins do século XIX a tragédia marca a vida dos Panaud. Célestin, avô do protagonista, tem um trágico fim. Fim causado fundamentalmente por pressões incutidas nos operários pelos dirigentes ao longo dos anos. Dia após dia. Ano após ano. E é possível perceber que se trata de uma batalha perpétua pela sobrevivência e pela justiça – o que são a mesma coisa para o caso dos trabalhadores.

E mesmo com essa vida carente de recursos, conseguidos à custa de muitas horas, muito suor e muita saúde, observamos as diversas vertentes da vida de Robert e de seus familiares e amigos. Seu gosto pela música o leva a participar da orquestra da fábrica, e com isso se aproximar de uma colega descendente de italianos, Graziella (Marina Golovine), pela qual se apaixona e casa.

O Grito...” mostra todas nuâncias da vida no escritória e na comunidade e dá espaço para que todos personagens justifiquem seus atos e pontos de vista, permitindo que a luta (eterna) da classe trabalhadora – e de todos seres humanos explorados – seja melhor compreendida em sua essência.

Robert e Graziella: pouco tempo livre.
Tomando como exemplo o Senhor Lessage, antigo colega do pai de Panaud que seguiu um caminho diferente: enquanto este decidiu se manter fiel a seus colegas, evitando dilemas morais como ter que escolher quem será demitido ou como podem ser cortados os custos, se mantendo portanto operário e sem promoções, aquele se alinhou mais à chefia e acabou ocupando um cargo mais alto na fábrica. No entanto, pagou o preço de se afastar de seus colegas, e desde então carrega um peso na consciência que tenta maquiar a todo custo com sua expressão séria e “racional”. Todos dias, com todo mundo. No entanto, – e aí que reside a grandeza de “O Grito...” – Lessage, num momento crítico, decide atuar em favor de seus semelhantes, demonstrando uma firmeza singular perante seus 'superiores' [sempre aspas nesses casos], quando se vê diante de uma questão fundamental de justiça trabalhista. E nesse ponto vemos que muitas pessoas nas mesmas condições sociais agem como inimigos entre si (desunidas) por motivos de imposição de força daqueles que controlam a economia, ou por verem a ascensão profissional – à custa de princípios morais – como o meio de promoverem o bem da sociedade.

O discorrer da vida de Robert, com as memórias de seus antepassados e o crescimento de seu filho, é permeada com dilemas comuns a todos. Não vemos apenas um rapaz que é compelido a entrar no mundo da indústria aos 15 anos por falta de oportunidades. O que se vê é um ser humano com ideais e possibilidades, que ama e quer compreender o mundo e luta contra todas injustiças. Sua vida é a constatação de que as condições sociais precárias das famílias servem de matéria-prima para os industriais obterem meios de aumentarem seus lucros indefinidamente mas sem finalidade. E as desculpas para essa produtividade vão desde a 'necessidade de vencer o inimigo', 'a sobrevivência da fábrica', 'o 'progresso' da comunidade',...Justificativas ocas que são prontamente desmascaradas ao observarmos a realidade retratada do front de guerra (a fábrica). E ao ouvirmos os discursos calcados de lógica e bom senso de Ferrari (François Morel), o sindicalista. Discursos cuja veracidade logo é comprovada ao observarmos como as coisas são e foram na vida dos trabalhadores daquela fábrica.

Logo no início da projeção, quando o jovem Robert estréia seu primeiro dia na fábrica, ele passa diante do portão de entrada. E não poderia ser mais claro: para quem viu muitos filmes da Segunda Guerra, o portão lembra a entrada de um campo de concentração. O formato, o material, e até as dimensões, fazem o espectador estranhar aquilo. Somada às fumaças saindo das chaminés, aos controles sistemáticos, e a falta de finalidade de tudo aquilo, temos aí uma mensagem que ao contrário de ocultar verdades, procurá revelá-las (por mais chocante que possa ser essas verdades).

Em suma, “O Grito de uma Vida” é a DESMISTIFICAÇÃO do que foi, é, e continuará sendo, a luta dos trabalhadores e da sociedade.

Trata-se de uma análise profunda e não-maniqueísta de uma das realidades mais marcantes de nossos tempos.

Trecho do filme (em francês):
http://www.youtube.com/watch?v=tbuS353hOxU

Ficha completa:
http://www.imdb.com/title/tt0459240/?ref_=fn_al_tt_2

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