domingo, 20 de outubro de 2013

Sonho de um Homem Ridículo

Quando eu estava no primeiro ano de faculdade ocorreu uma feira do livro no segundo semestre. Corria o ano de 2004. Eu já havia desenvolvido razoavelmente a cultura de leitura, e o desconto de 50% em todos títulos era atraente para o meu bolso árido. As condições para o consumo consciente estavam presentes. E a vontade. Portanto decidi me lançar às compras.

Um dos primeiros autores que comecei a buscar foi Dostoiévski. Já tinha ouvido falar de suas obras mais célebres como "Crime e Castigo" - um marco na literatura mundial - e decidi me iniciar na leitura desse louco e genial autor eslavo.

Eu tinha consciência da minha futura (e até presente) falta de tempo. Portanto, minha intuição me levou a selecionar obras relativamente curtas, que não ultrapassassem 150 ou 200 páginas (com letras não tão pequenas), ou, caso houvesse algo tremendamente interessante e longo, que fosse realmente interessante, de modo que eu fosse capaz de ler de ponta a ponta em uma ou duas semanas - no máximo.

Eis que me vejo diante de um livreto curto que, além de seu tamanho prático, tinha duas histórias embutidas. Eram Duas Narrativas Fantásticas: "A Dócil" e "Sonho de um Homem Ridículo". A segunda história me atraiu pelo título. Sempre senti uma atração natural pela história de indivíduos considerados ridículos ou fracos ou fracassados na vida - ou tudo isso junto. Talvez porque eu me sentisse dessa forma a maioria do tempo com a maioria das pessoas. Raros eram os ambientes em que eu me sentia em sintonia e portanto livre e capaz de manifestar minhas idéias e revelar meus sonhos e desejos. Raros.

Comprei o livro (além de outros 12) e, algumas semanas depois, no escuro do meu quarto, decidi começar a leitura. E foi uma leitura relâmpago. A curiosidade me consumiu. Cada palavra do narrador me atraía cada vez mais para o seu mundo.

Passados vários anos assisti a um vídeo no YouTube em que o filósofo Luis Felipe Pondé faz uma análise dessa história. Como havia se passado quase uma década da minha primeira leitura - e já havia me esquecido dos detalhes - decidi pegar o livro novamente e relê-lo. Foi no sábado passado. Decidi ler numa daquelas cadeiras de tomar banho de sol no SESC - não fazia sol.

Trata-se de uma narrativa verdadeiramente fantástica, sobre um homem pobre, relativamente jovem, que morava num quarto minúsculo com poucos moveis em São Petersburgo. Segundo seus relatos, desde os primórdios de sua infância ele sentia que era um homem ridículo. E para mim isso significava que ele era visto como ridículo pelos seus colegas, familiares e toda sociedade em geral. Seus costumes provavelmente estavam em desacordo com aqueles seguidos pelo grosso da sociedade na qual ele estava inserido. E sabe-se que tudo que é diferente é tido como ridículo.

Eis que numa noite ele relata que teve a idéia de se matar. Sim, se suicidar. Tirar a vida. Deixar de existir por completo, segundo ele mesmo e sua (não) crença. E assim acabar com o mundo ao mesmo tempo. Pelo menos para ele, já que tudo que ele conhecia deixaria de existir. Para sempre.

A grande surpresa é que esse homem pega no sono justamente na noite fria, úmida e cinzenta em que decide tirar sua vida. Já faziam meses que ele era indiferente às questões do cotidiano. Não ligava para os acontecimentos sociais, econômicos e políticos de seu país (e do resto do mundo); tampouco da realidade dos vizinhos, da cultura, do amor, da ciência, da filosofia, etc. Nada. Mas não se sabe exatamente porque, mas naquela noite, duas horas antes de executar sua ação final, esse homem se inquieta com diversas questões da vida. Tudo graças a uma menininha que apareceu diante dele antes de voltar pra casa. Uma criança que estava desesperada porque sua mãe tinha desmaiado. Mas que ele, já decidido de sua atitude futura, ignorou-a. Mas agora, sentado em sua poltrona velha e confortável (voltariana segundo ele), o homem é incapaz de abandonar a imagem da menininha. E vem à tona diversas coisas. E no meio dessas reflexões profundas ele adormece. Puf!

O sonho que se segue tem significados misteriosos. Após o impressionante relato ficamos nos perguntando - assim como o homem - se tudo aquilo foi real ou uma simples invenção de sua mente (será que foi real? o que é real, afinal?). Mas os detalhes são tantos que parece de fato haver alguma coisa misteriosa por trás de tudo aquilo. E lógica.

É interessante examinarmos a fundo as possíveis interpretações que podemos ter para essa história aparentemente banal. Parece que Dostoiévski estava colocando na roda de discussão da sociedade da época uma série de questões fundamentais, que sempre inquietaram a mente dos seres humanos: existe vida após a morte? existem outros mundos? se sim, como são? o que é ser ridículo? São perguntas que levam a outras e assim por diante. Ad infinitum.

Por que será que esses tipos de sonhos sempre sondam as mentes de pessoas tidas como loucas ou ridículas? É uma observação muito interessante. Será que essas pessoas tem uma espécie de sensibilidade mais apurada? Uma espécie de sexto sentido?

"Sonho de um Homem Ridículo" é um atestado da genialidade de Dostoiévski  Uma conexão da Arte com a Religião, a Ciência e a Filosofia. Um convite à reflexão.

É uma narrativa verdadeiramente fantástica. 

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